Produção, trabalho e crise ecológica

21 de outubro 2023 - 15:47

Face à crise climático-ecológica, a batalha só pode ser travada restituindo ao trabalho o seu carácter de atividade social produtora de valores de uso para satisfazer necessidades humanas reais (por oposição às necessidades humanas alienadas pelo capital produtivista/consumista). Por Daniel Tanuro.

PARTILHAR
Ecologia. Ilustração publicada pelo A LEncontre.
Ecologia. Ilustração publicada pelo A LEncontre.

“Produzir” significa “fazer aparecer”, “trazer à existência”. A natureza produz e a biosfera em particular produz. No entanto, dentro da natureza, podemos distinguir uma forma de produção especificamente humana. Esta caracteriza-se por cinco características principais:

1°) O Homo sapiens identifica recursos no seu ambiente, extrai-os e transforma-os para satisfazer as suas necessidades através de coisas que, sem a sua ação, não apareceriam espontaneamente.

2°) A espécie humana mantém uma relação com o resto da natureza mediada por uma atividade específica – o “trabalho”; nesta atividade utilizam-se ferramentas.

3°) O cérebro ajusta constantemente o trabalho ao seu objetivo, avalia o resultado e desenvolve a sua produtividade através de novas ferramentas e/ou novas formas de organização; neste processo, surgem novas necessidades.

4°) Sendo a espécie social por natureza, o trabalho é social desde o início, o que pressupõe relações sociais, comunicação e formas sociais de organização.

5°) A evolução do processo de trabalho explica, em última análise, a evolução das formas sociais, cujas características principais permitem distinguir os modos históricos de produção da existência.

É evidente que a produção humana emergiu da produção natural como fruto dos mecanismos evolutivos. É por isso que algumas das características acima mencionadas existem de forma embrionária no resto da natureza: alguns animais criam ferramentas, alguns insetos vivem em sociedades baseadas na divisão do trabalho, etc. No entanto, a linguagem, o aperfeiçoamento constante da produtividade do trabalho e o encadeamento dos modos históricos de produção são características especificamente humanas. O Homo sapiens “produz a sua própria existência social”, como dizia Karl Marx. A espécie humana faz evidentemente parte da natureza mas ocupa uma posição muito particular. O geneticista Alain Prochianz considera que estamos ao mesmo tempo dentro da natureza e fora dela [1]. A fórmula é paradoxal, mas foca a atenção na relação entre a humanidade e a natureza e precisamos desta focalização para pensamos sobre a “crise ecológica”.

Precisamos dela porque a perturbação grave da relação entre a humanidade/natureza é a causa da crise e esta, para além de destruir inúmeras riquezas naturais, expõe a humanidade a ameaças existenciais. Os cientistas identificaram nove parâmetros para a sustentabilidade da nossa espécie na Terra. Foram determinados limites relativos para cada um destes parâmetros. Estes foram ultrapassados em seis dos nove casos (concentração de gases com efeito de estufa, declínio da biodiversidade, poluição atmosférica, envenenamento por “novas entidades químicas”, degradação dos solos, excesso de nitratos e fosfatos na água). O estado da camada de ozono estratosférica é o único parâmetro em relação ao qual os governos tomaram medidas que melhoraram a situação. Os dois últimos parâmetros são os recursos de água doce e a acidificação dos oceanos. É provável que os seus limites relativos também estejam a ser ultrapassados. Por exemplo, segundo o IPCC, 95% dos recifes de coral morrerão se a temperatura subir mais de 1,5°C devido à acidificação… ora, este limiar será atingido em menos de dez anos. O que acontecerá então às dezenas de milhões de pessoas cuja subsistência depende da riqueza destes recifes de coral?

A intensificação alarmante da catástrofe ecológica tende a fazer o jogo de certas pseudo-explicações essencialistas: a produção humana seria destrutiva por essência, seríamos assim demasiados na Terra. Evidentemente, não podemos negar que o Homo sapiens tem uma pegada ecológica específica, superior à de outras espécies: vestimo-nos, alojamo-nos, preparamos a nossa alimentação, construímos máquinas para nos deslocarmos e comunicarmos entre nós… A demografia não é, porém, a causa da destruição em curso. De acordo com o último relatório do IPCC (AR6), os três a 3,5 mil milhões de seres humanos que mais estão a sofrer os impactos das alterações climáticas são precisamente aqueles que têm a menor responsabilidade histórica pelas emissões (uma grande parte nem sequer tem qualquer responsabilidade!). O 1% mais rico da humanidade emite mais CO2 do que os 50% mais pobres. A cantiga sobre “os pobres que têm demasiados filhos” serve claramente para desviar a atenção do facto de que são os ricos (do Norte e do Sul) que estão a criar a catástrofe climática. Com os seus jatos privados, carros de luxo, palácios faraónicos, consumos ostentatórios… e investimentos produtivistas enquanto acionistas motivados apenas pelo lucro. Em suma, as teorias essencialistas procuram esconder as causas sociais da crise. Fazem o jogo da extrema-direita racista e das políticas bárbaras de expulsão de migrantes.

Estas causas, quais são elas? Porque é que a relação entre a humanidade e a natureza foi perturbada ao ponto de ambas estarem ameaçadas? Uma vez que o Homo sapiens produz a sua existência social através do trabalho, é inevitavelmente a este nível que a resposta deve ser procurada. Ao fazê-lo, temos de evitar uma variante da pseudo-explicação essencialista: não é o trabalho em si que explica a destruição ecológica mas a forma histórica que assumiu na história recente. Isto demonstra-se facilmente: a maioria dos cientistas considera que passámos do Holoceno para o Antropoceno. Segundo eles, os três marcadores desta mudança de era são o declínio da biodiversidade, a proliferação de nuclídeos radioactivos e a subida do nível dos oceanos. Ora, estes marcadores só começaram a deixar a sua marca geológica depois de 1945. A questão “quais são as causas sociais da crise ecológica” desemboca assim noutra: qual a mudança que afetou o trabalho na história recente e em que é que essa mudança explica a explosão da catástrofe ecológica na segunda metade do século XX?

Os cinco traços distintivos enumerados no início deste contributo aplicam-se ao trabalho humano em geral. Mas o trabalho assume formas particulares consoante os modos sociais de produção. Em termos gerais, durante a maior parte da história da humanidade, estas formas foram determinadas pelo facto de a única ou principal função do trabalho ser a produção de valores de uso (utilidades visando satisfazer as necessidades humanas). Mas já não é assim: atualmente, o trabalho visa produzir mercadorias (valores de troca) para o lucro de uma minoria que detém os meios de produção e que acumula dinheiro através da exploração do trabalho e da pilhagem dos recursos.

Esta situação é o produto de uma longa transição em que a operação económica que consiste em “vender para comprar” foi substituída pela operação económica que consiste em “comprar para vender”. O ponto-chave aqui é que “comprar para vender” só faz sentido se a quantidade de dinheiro trazida pela venda for maior do que a quantidade de dinheiro gasta na compra. A diferença constitui a “mais-valia”.

Esta mais-valia, por sua vez, só faz sentido se for reinvestida para trazer ainda mais mais-valia. Assim, o objetivo concreto da troca – satisfazer uma necessidade – é gradualmente suplantado por um objetivo abstrato – acumular dinheiro. É esta a definição de capital: uma soma de dinheiro que procura tornar-se mais dinheiro. Salta à vista que este capital visa inevitavelmente produzir cada vez mais, o que significa também consumir cada vez mais. Este modo de produção é produtivista (e consumista) por natureza.

Primeiro acantonada no comércio de longa distância e nas finanças, a dinâmica produtivista do capital ganhou amplitude e profundidade ao longo da história. Uma etapa decisiva foi ultrapassada quando a força de trabalho se tornou uma mercadoria. Esta mercantilização foi imposta pela apropriação dos meios de produção: as populações camponesas expulsas da terra foram obrigadas a trabalhar para os proprietários, em troca de um salário. Assim, através de uma longa transformação que teve início no século XV, o capital transbordou cada vez mais a esfera do comércio para se apropriar da esfera da produção. De repente, foram lançadas as bases sociais para que tudo, absolutamente tudo, se tornasse mercadoria. Com a Revolução Industrial, iniciada no final do século XVIII na Inglaterra, o capital bulímico casou-se com os combustíveis fósseis, graças aos quais conquistou toda a Terra [2]. Eis como, em menos de dois séculos, o produtivismo capitalista mudou a face do mundo e desencadeou a catástrofe ecológica global que se cresce à nossa volta.

Esta catástrofe já não pode ser evitada. O máximo que podemos fazer é tentar evitar que se transforme num cataclismo. Mas isto só é possível saindo da lógica produtivista e, portanto, emancipando o trabalho das camisa de forças do capital. O problema é que esta lógica organiza hoje a atividade da grande maioria da população mundial. Privados de qualquer autonomia, esta depende inteiramente da venda da sua força de trabalho para sobreviver. A principal questão estratégica da luta ecológica é, portanto, uma questão social, que se formula da seguinte forma: como subtrair o mundo do trabalho da dominação capitalista do lucro? O problema é tanto mais espinhoso quanto o mundo do trabalho está na defensiva e que já não é suficiente travar o crescimento capitalista: a catástrofe assumiu tal magnitude que um decrescimento global na produção material e nos transportes se tornou essencial, nomeadamente para manter o aquecimento abaixo do patamar de 1,5°C, conforme decidido na COP21 em Paris. Como envolver neste combate trabalhadores consumidos pelo individualismo, empurrados para a defensiva por 40 anos de neoliberalismo brutal, e que temem – e com razão! – que a chamada “transição energética” capitalista seja feita à custa dos seus empregos e dos seus salários? Essa é a questão… That’s the question

O “Soulèvements de la Terre” não é uma exceção francesa. Nestes últimos anos, assistimos a lutas radicais desenvolverem-se contra a destruição ecológica capitalista um pouco por todo o lado [3]. Com raras exceções, os trabalhadores e os seus sindicatos têm estado ausentes destas lutas. Estas lutas estão a ser travadas por jovens, povos indígenas e pequenos agricultores – em particular mulheres, que estão na linha da frente nestes três grupos sociais. Ao unirem-se, estas componentes podem criar um equilíbrio de poder e, nalguns casos, fazer recuar os capitalistas e os governos que os servem. Mas, em última análise, a batalha só pode ser ganha devolvendo ao trabalho o seu carácter de atividade social que produz valores de uso para satisfazer necessidades humanas reais (em oposição às necessidades humanas alienadas pelo capital produtivista/consumista).

Ao unirem-se, estas componentes podem criar relações de forças e, em alguns casos, fazer recuar os capitalistas e os governos que estão ao seu serviço. Mas a batalha só pode ser ganha em definitivo devolvendo ao trabalho o seu carácter de atividade social que produz valores de uso para satisfazer necessidades humanas reais (em oposição às necessidades humanas alienadas pelo capital produtivista/consumista).

O “capitalismo verde” é um logro. Parar a catástrofe exige, pelo contrário, a abolição do capitalismo. Cada vez mais pessoas compreendem esta necessidade. O anti-capitalismo é uma bússola estratégica. Nesta base, os movimentos ecologistas radicais devem tentar articular o seu radicalismo legítimo e as abordagens que visam envolver sectores do mundo do trabalho numa luta comum por um projeto de sociedade ao mesmo tempo social e ecológico para a sociedade. Esquematicamente, estas abordagens comportam dois aspetos:

- Em primeiro lugar, um apoio sistemático aos trabalhadores que lutam pelas suas reivindicações sociais porque só nas lutas é possível desenvolver uma consciência eco-social comum a todos os movimentos sociais;

- Em segundo lugar, a invenção de reivindicações que respondam simultaneamente às necessidades sociais e ecológicas, como, por exemplo, a redução radical do tempo de trabalho sem perda de salário, a socialização da energia e do crédito, e a extensão da gratuitidade.

A dificuldade é enorme mas não há outro caminho. A direita, em crise de legitimidade, desliza cada vez mais para a extrema-direita, nomeadamente ao rotular demagogicamente os ativistas ecologistas radicais como inimigos do emprego e do nível de vida, ou mesmo como “eco-terroristas” e “wokistas”. Desta forma, espera atrair os eleitores das classes populares, para os poder submeter ainda melhor às suas políticas anti-sociais. Trump, Darmanin, Bouchez [Georges-Louis Bouchez, presidente do Mouvement réformateur belge que manifestou o seu “respeito” por Zemmour, entre outros comentários reacionários] são apenas alguns exemplos deste perigoso fenómeno. Uma estratégia ecossocialista é indispensável para os travar.


Daniel Tanuro é engenheiro agrónomo e nasceu na Bélgica. Fundou a associação “Clima e Justiça Social”. Tem artigos escritos sobre questões ambientais em várias revistas e jornais. É também autor de vários livros, nomeadamente “O impossível capitalismo verde” que se encontra traduzido em português pelas edições Combate.

Contribuição escrita em abril de 2023 para a revista SITO-Students in Transition Office da Universidade Livre de Bruxelas.

Publicado pelo A L’Encontre. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.


Notas:

[1] Alain Prochiantz, Singe toi-même, Ed. Odile Jacob, 2019.

[2] Ver sobre este tema: Le premier âge du capitalisme (1415-1763), três tomos, Editions Page deux (Lausanne) et Syllepse (Paris), 2018-2019. (Réd.)

[3] Para uma visão geral, ver a obra que coordenei com Michaël Löwy, Luttes écologiques et sociales dans le monde. Allier le vert et le rouge, Ed. Textuel, Paris, 2021.